quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Trecho A Maça no Escuro

Foram longas horas de trem. Solitarias e silenciosas. Mas enfim, consegui terminar de ler um livro muito especial que foi meu companheiro de viagem. A Maça no Escuro de Clarice Lispector. Confesso que demorei relativamente bastante para terminar um livro de apenas 257 paginas, foi uma leitura paciente e desafiadora devido o texto de Clarice ser cheio de sugestao. Eu lia e relia por diversas vezes o mesmo trecho ate conseguir compreender a mensagem que existia alem do jogo de palavras.

Gostaria de compartilhar aqui um trecho que traduz da melhor maneira possivel (que eu nao seria capaz de fazer) tudo o que estou passando.

Ela quisera pela primeira vez fazer o que se chamava "viver" e , que num primeiro e incerto passo de gloria seria ir sozinha, ficar sozinha e se concentrar e ter o mais alto de si mesma.

Eu tinha ido para ficar sozinha e me concentrar, me separei de todos e fui de barca com minha mala - mas ja na barca estava ficando aquele ruim que eu reconhecia, aquela provaçao, aquela sensaçao quase boa mas perigosa - mal eu tinha pisado naquela barca que se balançava tonta e tudo ja me tocava e me deixava dolorosa, curiosa, viva, cheia de curiosidade - mas nao era isso mesmo o que eu queria? nao era isso mesmo o que eu tinha ido buscar? Era...mas por que e que eu nao queria me dar conta do que estava acontecendo? por que olhava para tudo de cabeça levantada, fingindo? Cheguei ainda de tarde, meu coraçao se apertou espantado, e as pessoas olharam eu passar entre elas. Eu nao conhecia ninguem e nao deixei ninguem adivinhar que isso me fazia o coraçao bater. Guardei a mala no quarto e meu impulso era o de tomar a barca e voltar, mas isso seria falhar! De algum modo eu tinha ido para sofrer o que estava me acontecendo, pois nao era a vida que eu tinha querido? e se eu nao soubesse aceita-la, somente porque ela era mais crua do que eu esperara - seria o fracasso.

O medo, o medo nao me deixava um movimento, mas depois que passou a surpresa - entao rebentou o que eu mal e mal tinha contido ate aquele instante - a beleza do lugar rebentou, a linha fina do horizonte rebentou, a solidao a que eu tinha voluntariamente chegado rebentou, o balanço da barca rebentou, e rebentou o medo da intensidade da alegria que sou capaz de atingir - e sem poder mais mentir, chorei rezando no escuro "nunca mais isso, oh Ds, nunca mais me deixe ser tao audaciosa, nunca mais me deixe ser tao feliz, tire para sempre a minha coragem de viver; que eu nunca va tao adiante em mim mesma, que eu nunca me permita, tao sem piedade, a graça, pois antes morrer sem ter jamais visto que ter visto uma so vez! porque Ds, com sua bondade permite e aconselha que as pessoas sejam covardes e se protejam, seus filhos prediletos sao os que ousam, mas ele e severo com quem ousa, e e benevolente com quem nao tem coragem de olhar de frente e ele abençoa os que abjetamente tomam cuidado de nao ir longe demais no arrebatamento e na procura da alegria, desiludido ele abençoa os que nao tem coragem. Ele sabe que ha pessoas que nao podem viver com a felicidade que ha dentro delas, e entao ele lhes da uma superficie de que viver, e lhes da uma tristeza, ele sabe que tem pessoas que precisam fingir, porque a beleza e arida. E entao eu disse para mim "tenha medo, porque ter medo e a salvaçao". Porque as coisas nao devem ser vistas de frente, ninguem e tao forte assim, so os que se danam e que tem essa força. Mas para nos a alegria tem que ser como uma estrela abafada no coraçao, a alegria tem que ser apenas um segredo, a natureza da gente e o nosso grande segredo, a alegria deve ser como uma irradiaçao que a pessoa jamais, jamais deve deixar escapar. Sente-se um estilhaço e nao se sabe onde: e assim que tem que ser a alegria: nao se deve saber porque, deve-se sentir assim: "mas o que e que eu tenho?" - e nao saber. Embora quando se toque em alguma coisa, essa coisa brilhe por causa do grande segredo que se abafou - eu tive medo, porque quem sou eu sem a contençao?



personagem Vitoria em A maça no Escuro

Clarice Lispector.

Nenhum comentário:

Postar um comentário