terça-feira, 22 de setembro de 2009

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

E o judaismo?

Antes de vir pra ca, eu ainda nao sabia direito onde iria morar, como seria minha cidade, minha casa, minha rotina, nada! Mas eu ja sabia que na cidade vizinha havia uma pequena comunidade judaica e uma sinagoga. Isso e que da ter uma idiche mame e um idiche papi internautas! Depois de uma intensa pesquisa e troca de emails, eles conseguiram o contato de uma indiana judia - Shulamit -disposta a me receber para um shabat quando eu quisesse.


Mas foi apenas depois de 4 meses morando aqui que tive a chance de ir para Ahmedabad conhecer essa curiosa e pequena comunidade judaica da India.

Shulamit me enviou por email um convite para a celebraçao dos 75 anos da sinagoga. A programaçao começaria na sexta-feira, com um shabat, e se estenderia ate sabado a noite. Muito simpatica, Shulamit se desculpou por nao poder me receber em sua casa desta vez, pois iria receber muitos familiares de Mumbai e Pune , mas fez questao de me reservar um quarto em um hotelzinho perto da sinagoga.

Ahmedabad fica apenas a 1 hora daqui. E uma cidade bem mais desorganizada, suja e pobre se comparada a Vadodara, mas nao deixa de ter um certo charme (charme nas proporções indianas). Segundo algumas informaçoes que me foram dadas e pesquisadas, a comunidade judaica se deu incio em Ahmedabad pois alguns judeus vieram com o serviço ingles, na epoca de domino sobre a India.Vieram com o exercito, outros com serviços como correiros, ferrovias, etc...seus filhos se tornaram advogados, medicos e professores. Mas hoje em dia, quase toda a comunidade fez Alia.

Para encontrar a sinagoga foi complicado. Situada em uma rua estreita, no final de um mercado de rua (que me lembrou muito as famosas Shuk's de Israel) a sinagoga e imponente. A primeira coisa que chama a atençao sao as grades pois, por aqui, nada (incluse os templos religiosos) tem proteçao como grades ou muros, mas a sinagoga, alem de ter um portao de ferro na entrada tambem tem 3 seguranças(2 homens e 1 mulher) com sensores de metal, revistando cada pessoa que entra. Outra coisa tambem engraçada e o toque do "charme" indiano que a sinagoga tinha...na parte de fora, muitas luzinhas coloridas, do tipo que vemos no natal, cobriam toda a fachada desde o telhado ate o piso. Na entrada, muitas flores e velas no chao. No salao interior a decoraçao nao podia ser diferente. Muitas flores penduradas, bixigas, tudo muito colorido! Colorido que ganhou ainda mais força quando a sinagoga começou a lotar, com as cores dos saris das indianas!


Assumo que inicialmente senti uma certa estranheza. Ver os indianos usando kipa, alguns conversando em hebraico, as mulheres tambem cobrindo a cabeça com um pequeno lenço...eu nao conseguia imaginar como, no meio de um pais enorme, no meio de tanta gente, no meio de uma reliigiao tao massiva que se faz presente com imagens e templos por todos os lados, ainda assim existe essa pequena comunidade judaica. Mas foi so começar o serviço de shabat que a estranheza foi embora! Foi confortante me sentar dentro da sinagoga, ler o sidur e ouvir as mesmas rezas de sempre, e mesmo estando tao longe e inserida em uma realidade totalmente diferente, mesmo assim, tive a sensaçao de estar em casa de um certo modo. E mesmo nao conhecendo ninguem, nao entendo a lingua deles, nao sabendo nada sobre a historia daquelas pessoas, na sinagoga falamos a mesma lingua, na sinagoga nos compreendemos, na sinagoga somos todos a mesma familia.

O shabat foi inteiro comandado por 3 meninos de 11 anos. Uma coisa linda! A facilidade e fluencia com que eles rezavam e liam o sidur, a concentraçao daquelas crianças e a atençao que todos os presentes davam foi algo unico! Todos rezando juntos, homens, mulheres, muito concentrados! fazendo todos os movimentos, de se curvar, de virar para um lado, para o outro...
Perguntei onde aquelas crianças aprendem hebraico e judaismo, pois escola judaica nao existe.Um dos presentes me contou que as aulas sao na sinagoga mesmo, todos os domingos pela manha, e as crianças nao faltam 1 domingo se quer!


Apos a cerimonia, fomos para o pateo externo onde o jantar foi servido. Para minha tristeza nao teve nada de vareniks, guefiltfish ou chala...era tudo comida indiana, obvio! Mas estava uma delicia mesmo assim.

Foi nesse momento que eu comecei a reparar mais no jeito desses indianos judeus, e ao mesmo tempo que percebi algo de muito diferente comparado ao jeito indiano de ser, percebi algo muito similar comparado ao jeito judaico de ser. Diferente dos outros indianos pois esses se mostraram mais tranquilos, falando mais baixo, um pouco mais "educados", e a similaridade ao jeito judaico foi percebida mais entre as mulheres. Todas tagarelando, cumprimentando todo mundo, as maes mostrando com aquele ar de orgulho os filhos para as amigas, com assuntos do tipo : - olha so como ele cresceu, eles esta estudando, vai viajar, bla bla bla... tambem reparei que as mais senhorinhas, antes de irem embora, fizeram o famoso "embrulhinho" com alguns dos docinhos para levar para casa...ok, nao sei se isso e de fato uma caracteristica judaica, mas na minha familia pelo menos posso garantir que e! :D



No dia seguinte, acordei cedo e fui acompanhar a reza da manha.
Depois foi a hora do tesoureiro da sinagoga agradecer algumas pessoas importantes da comunidade. Essa parte durou mais de 2 horas! Apesar da comunidade ser muito pequena (apenas 30 familias), eles fizeram questao de contar a historia de cada uma! de como cada membro tem ajudado a manter a sinagoga (ele leu um por um, todos os nomes de quem doou dinheiro e a quantia que cada um doou, todos foram aplaudidos!) e tambem homenagear todos os judeus que de alguma forma se destacam com importantes cargos em Ahmedabad. Muitos dos judeus fundaram escolas na cidade, alguns trabalham com o governo, um outro foi o fundador do zoologico da cidade, enfim....nao diferente de outros paises no mundo, temos representantes em respeitosas posiçoes profissionais.
Apos tudo isso, serviram o almoço, e eu fui embora.

Foi uma experiencia muito interessante. Eu estava totalmente desligada e distante do judaismo por aqui, eu estava apenas conhecendo e vistando templos e mais templos hindus, pesquisando e tentando entender as festividades hinduistas, e foi bom poder fazer um shabat, ouvir nossas rezas, me sentir acolhida de alguma forma.

Tambem fiquei bastante emocionada com os membros da comunidade de Ahmedabad, que com muita satisfaçao e alegria, se esforçam para manter a sinagoga funcionando, se esforçam para nao deixar a chama do judaismo se apagar no meio de tanta diferença e indiferença dos outros milhoes de habitantes da cidade. Se esforçam e se orgulham! Eles sao muito orgulhosos por serem judeus, sao muito orgulhosos por ainda carregarem nossa historia, e nao podia ser diferente! Eles sao vitoriosos e tem todo o direito de se orgulhar!


A festa da sinagoga foi um grande evento, judeus de Mumbai, Pune, e outros estados vieram participar e no dia seguinte ate uma materia saiu em todos os jornais, onde o hazan da sinagoga diz em um depoimento:
" This is the biggest day of our lives, this event is important for the entire community"

Achei tocante. Relatar essa comemoraçao como o maior dia de sua vida mostra a importancia e o valor que eles tem em manter nossa tradiçao e nossa religiao, e podem ter certeza, que se hoje estamos comemorando 5770 anos de historia e sobrevivencia, e por causa de judeus como eles. Que acreditam, que sentem amor e fazem questao de cultivar e permanecer com essa identidade, a identidade de um povo, de uma historia, de uma unica fe e de um unico D's!

Shana Tova!

Desejo a todos voces, nesse novo ano que se inicia, que possam carregar no coraçao um pouco disso tudo que eu pude relatar.Um pouco desse orgulho, dessa vontade e alegria de sermos judeus!


She hechianu vechimanu vehiguianu lazman aze!

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Trecho A Maça no Escuro

Foram longas horas de trem. Solitarias e silenciosas. Mas enfim, consegui terminar de ler um livro muito especial que foi meu companheiro de viagem. A Maça no Escuro de Clarice Lispector. Confesso que demorei relativamente bastante para terminar um livro de apenas 257 paginas, foi uma leitura paciente e desafiadora devido o texto de Clarice ser cheio de sugestao. Eu lia e relia por diversas vezes o mesmo trecho ate conseguir compreender a mensagem que existia alem do jogo de palavras.

Gostaria de compartilhar aqui um trecho que traduz da melhor maneira possivel (que eu nao seria capaz de fazer) tudo o que estou passando.

Ela quisera pela primeira vez fazer o que se chamava "viver" e , que num primeiro e incerto passo de gloria seria ir sozinha, ficar sozinha e se concentrar e ter o mais alto de si mesma.

Eu tinha ido para ficar sozinha e me concentrar, me separei de todos e fui de barca com minha mala - mas ja na barca estava ficando aquele ruim que eu reconhecia, aquela provaçao, aquela sensaçao quase boa mas perigosa - mal eu tinha pisado naquela barca que se balançava tonta e tudo ja me tocava e me deixava dolorosa, curiosa, viva, cheia de curiosidade - mas nao era isso mesmo o que eu queria? nao era isso mesmo o que eu tinha ido buscar? Era...mas por que e que eu nao queria me dar conta do que estava acontecendo? por que olhava para tudo de cabeça levantada, fingindo? Cheguei ainda de tarde, meu coraçao se apertou espantado, e as pessoas olharam eu passar entre elas. Eu nao conhecia ninguem e nao deixei ninguem adivinhar que isso me fazia o coraçao bater. Guardei a mala no quarto e meu impulso era o de tomar a barca e voltar, mas isso seria falhar! De algum modo eu tinha ido para sofrer o que estava me acontecendo, pois nao era a vida que eu tinha querido? e se eu nao soubesse aceita-la, somente porque ela era mais crua do que eu esperara - seria o fracasso.

O medo, o medo nao me deixava um movimento, mas depois que passou a surpresa - entao rebentou o que eu mal e mal tinha contido ate aquele instante - a beleza do lugar rebentou, a linha fina do horizonte rebentou, a solidao a que eu tinha voluntariamente chegado rebentou, o balanço da barca rebentou, e rebentou o medo da intensidade da alegria que sou capaz de atingir - e sem poder mais mentir, chorei rezando no escuro "nunca mais isso, oh Ds, nunca mais me deixe ser tao audaciosa, nunca mais me deixe ser tao feliz, tire para sempre a minha coragem de viver; que eu nunca va tao adiante em mim mesma, que eu nunca me permita, tao sem piedade, a graça, pois antes morrer sem ter jamais visto que ter visto uma so vez! porque Ds, com sua bondade permite e aconselha que as pessoas sejam covardes e se protejam, seus filhos prediletos sao os que ousam, mas ele e severo com quem ousa, e e benevolente com quem nao tem coragem de olhar de frente e ele abençoa os que abjetamente tomam cuidado de nao ir longe demais no arrebatamento e na procura da alegria, desiludido ele abençoa os que nao tem coragem. Ele sabe que ha pessoas que nao podem viver com a felicidade que ha dentro delas, e entao ele lhes da uma superficie de que viver, e lhes da uma tristeza, ele sabe que tem pessoas que precisam fingir, porque a beleza e arida. E entao eu disse para mim "tenha medo, porque ter medo e a salvaçao". Porque as coisas nao devem ser vistas de frente, ninguem e tao forte assim, so os que se danam e que tem essa força. Mas para nos a alegria tem que ser como uma estrela abafada no coraçao, a alegria tem que ser apenas um segredo, a natureza da gente e o nosso grande segredo, a alegria deve ser como uma irradiaçao que a pessoa jamais, jamais deve deixar escapar. Sente-se um estilhaço e nao se sabe onde: e assim que tem que ser a alegria: nao se deve saber porque, deve-se sentir assim: "mas o que e que eu tenho?" - e nao saber. Embora quando se toque em alguma coisa, essa coisa brilhe por causa do grande segredo que se abafou - eu tive medo, porque quem sou eu sem a contençao?



personagem Vitoria em A maça no Escuro

Clarice Lispector.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Fotos Varanasi









































Varanasi e arredores


Mal pude me estabilizar e me readaptar a loucura e bagunça de Vadodara apos minha semana tranquila em Sikkim que mais uma oportunidade de viajar me bateu a porta. Um amigo meu -indiano- me convidou para acompanha-lo ate Varanasi, pois seu pai faleceu e como ultimo desejo ele gostaria que suas cinzas fossem despejadas no Ganges. Nao tive como negar.Desde que soube que viria para India, conhecer Varanasi era uma das minhas prioridades. A cidade mais antiga e mais sagrada da India. A cidade da luz e da morte.

Como tinhamos poucos dias, meu amigo logo me avisou que seria uma viagem no indian "way of life", ou seja, 4 dias sem hotel, dormindo no trem e dando “um jeito” para tomar banho. Para falar a verdade, isso apenas me animou ainda mais!

Devido a Varanasi ser muito longe de Vadodara ele queria aproveitar para conhecer algumas cidades vizinhas. Durante esses 4 dias fomos para Varansi, Allahabad e por fim Khajuraho.
Quinta-feira a noite partimos de trem para Varanasi. Foram longas 27 horas de viagem. Compramos tickets na classe sleeper que sao vagoes compostos por 3 niveis de “camas” (tabuas) suspensas. Tudo muito apertado e compacto. Conseguir pegar no sono foi um pouco complicado pois os indianos nao falam,eles gritam! Eles nao riem, eles gargalham, e eles nao dormem, eles roncam! Roncam muito e muito alto. Perto disso, as baratinhas perambulando pelo chao e pelas paredes em volta de mim nao me incomodaram nem um pouco, mas depois que voce pega no sono a viagem e uma delicia, adoro o balanço do trem...

Na manha seguinte, acordei e para meu desencanto ainda estava no trem e ainda teria mais longas 20 horas. O engraçado e que voce acaba fazendo amizade com seus vizinhos de “quarto”, todo mundo acaba almoçando, jantando, jogando cartas juntos. O trem faz varias e curtas paradas, de 5 a 10 minutos no maximo! Fui me arriscar a descer em uma das paradas para comprar um suco e quase me dei muito mal, pois o vendendor nao estava entendendo o que eu queria e para comprar um suco, la se foram 4 e preciosos minutos,quando enfim ele entendeu, para conseguir o troco foi outro problema, la se foram mais alguns preciosos minutos, foi quando me dei conta que o trem começou a partir. Deixei o troco de lado e sai correndo para pular no vagao e por muito pouco quase fico para tras! Que susto! Depois dessa eu nunca mais me arrisco a descer do trem. Enfim, voltei ao vagao e tomei o suco de limao de caixinha mais caro da India. O tempo custou a passar, mas na manha seguinte (sabado) chegamos em Varanasi. Eram 4 e meia da manha, a cidade ainda estava escura,acordando. Pegamos um rickshaw ate um dos ghats do Ganges. Para entender um pouco melhor todo o misticismo e importancia que os hindus colocam em Varanasi, um pouco de historia:

Diz a lenda que Lord Shiva fundou Baranas (Varanasi),cerca de 5000 anos atrás que tambem e citada nos textos antigos como Kashi, a cidade da luz. Luz da consciência, luz da sabedoria, luz da compreensão espiritual. Luz que destrói as trevas da ignorância.Morrer às margens do rio Ganges é promessa de redenção, garantia de atingir a iluminação ou moksha, que é a libertação do ciclo eterno de nascimento, morte e reencarnação. Por isso que pelo menos uma vez na vida um hindu deve fazer a peregrinação até Varanasi e todos os dias eles chegam de toda India para se banhar nas águas sagradas. Tambem e interessante saber que em Varanasi existem muitos abrigos para idosos que nao tem familia ou estao doentes e optam por passar os ultimos dias de suas vidas se bahando e rezando no Ganges, esperando e se preparando para a morte, para a iluminaçao.Tudo acontece nos gaths, que são basicamente os degraus em direção ao rio.

Chegando em um desses ghats fizemos o tipico passeio de turista. Pegamos um barquinho a remo e navegamos o Ganges passando por todos os ghats enquanto o dia ia amanhecendo. Observar a vida na beira do ganges e algo incrivel. Pessoas meditando, orando, se banhando, lavando as roupas, praticando Yoga, e o som do remo ao fundo,calmo batendo na agua, os mantras cantados, os sinos ... eu nao conseguia enxergar aquilo tudo como real, para mim a sensação era de estar dentro de um livro muito antigo, uma viagem no tempo, foi dificil encarar tudo aquilo como algo que eu de fato estava vivendo. A energia do ambiente e inegavel, a sensaçao do tempo e diferente, uma paz e uma calma envolve a todos que ali se encontram. Puro misterio, pura espiritualidade, todos que estao la estao em razao da fe e da crença, nada alem. E voce sente isso, voce respira, voce se envolve. Tudo ja estava sendo muito alem do que eu imaginaria e foi quando as coisas começaram a ficar mais e mais pesadas, mais dificeis de compreender. Como eu disse anteriormente, meu amigo foi para la com um objetivo, o de despejar as cinzas do pai e isso teria de ser feito em frente Manikarnikha Ghat, o principal burning ghat de Varanasi, onde os rituais de cremação acontecem 24 horas por dia, todos os dias.
Primeiro ele teria que mergulhar nas aguas do Ganges para se purificar (aguas que servem como banheiro, lugar para lavar as roupas, tomar banho, escovar os dentes e jogar as cinzas e os corpos que nao sao cremados). Depois disso um ritual de rezas e bençaos se seguiu, de dentro do barco mesmo. Fiquei emocionada e ao mesmo tempo em choque quando meu amigo abriu o pote e despejou “o pai” no rio. Nao consegui e nem quis tentar imaginar a sensaçao que ele estava passando. Conheço ele a muito pouco tempo, mas pelo pouco que ele me contou a relaçao com o pai nao era das melhores, eles mal se falavam, o pai nunca foi presente,mas mesmo assim ele sempre teve muito orgulho e certeza de que seu pai era um bom homem. Depois disso, completamente sensivel eu ainda pedi para o barqueiro parar no burning ghat pois eu queria descer e ver tudo de perto. Meu amigo ficou no barco, ele nao quis me acompanhar. La fui eu sozinha. Entre montes de cinzas e nuvens de fumaça dos corpos que ali estavam sendo cremados eu desci e caminhei. Um dos sujeitos que trabalhava la, queimando e preparando as fogueiras me acompanhou e me explicou como tudo acontece. Me levou ate pertinho da fogueira de onde puder ver com perfeiçao a ossada sendo queimada. Logo ao lado uma nova fogueira estava sendo preparada, foi quando vi um corpo chegando, enrolado em um lindo tecido rosa. Provavelmente era de uma mulher. Aquele ar pesado, aquele cenario antigo, escuro e sujo e o cheiro de fumaça com o calor do fogo fez eu me sentir no buraco do mundo, no lado obscuro da vida, mas mesmo assim a sensaçao nao era de pavor ou de medo, incrivelmente e inexplicavelmente ainda conseguia sentir uma certa leveza. La as pessoas nao choram, nao se desesperam. Tudo acontece muito naturalmente, sem lamentações pois para eles esse e um momento de alivio, o momento da alma ser finalmente libertada. A cremaçao dura em torno de 3 horas e durante todo o tempo os familiares ficam ali, observando o corpo ser cremado ate a chama se apagar por completo. Faz parte do ritual. Para eles, esse e um momento de ensinamento e de reflexao sobre os misterios da vida e da morte.

Fiquei sem saber o que pensar, sem saber o que sentir, sem saber o que estava de fato acontecendo. Paralisei. Simplesmente me senti perdida. Assim que voltei para o barco meu amigo me apontou outra cena chocante. Como se ja nao bastasse tudo que eu estava vendo e sentindo, ao lado do nosso barco um homem estava na beira do Ganges, agaixado com um bebe recem nascido em seus braços, enrolado em um lençol branco e apenas com o seu rostinho delicado descoberto. Ele amarrou com uma corda o corpo do bebe em uma pedra, subiu em um barco e a uns 100 metros da beira jogou a criança no rio. (crianças, mulheres gravidas, leprosos e homens sagrados nao podem ser cremados)

Essa cena foi algo indescritivel. So de relembrar ja fico desestabilizada. Tudo isso aconteceu muito intensamente pra mim. Nunca percebi a morte tao proxima e tao viva.
O filho jogando as cinzas do pai, o pai jogando o corpo do filho, o cheiro da morte, a falta das lagrimas, tudo muito passivel, a morte sendo aceita.

O que foi para o pai a morte de um filho que mal teve a chance de respirar nesse mundo? Um filho que ele nao teve a oportunidade e o prazer de conviver, mas mesmo assim um filho para o qual um laço afetivo foi criado. Um laço de uma ponta so, um laço de sentimentos vindos apenas do pai que durante 9 meses foi criando dentro de si, foi criando amor, esperança, alegria, e tudo isso lhe foi tirado sem ao menos a chance de gozar desses sentimentos. E o bebe, sera que ele teve conciencia alguma sobre a vida? O que foi para o bebe a vida? Podemos dizer que esse bebe viveu? Sera que ele sentiu o viver? O pai com certeza sentiu sua morte, sentiu a perda, mas sentiu a perda de seus proprios sentimentos, sentiu o seu proprio laço se desfazendo, laço que foi criado de sentimentos prematuros.

E o que foi para um filho a morte de seu pai? Um pai sempre ausente, um pai que enquanto vivo parecia estar morto em seus pensamentos, mas ironicamente, sua morte lhe fez mais presente, mais vivo dentro do filho. A morte, que nesse caso, foi o fator de reaproximaçao, de reflexao sobre a falta. Agora o filho sente o amor, o amor que vem depois, o amor fruto do arrependimento, do perdao, da compreensao, o amor que renasce para adoçar as lembranças que antes eram amargas.

Tudo isso me levou a pensar que o sofrer causado pela morte e um sentimento egoista, sofremos por nos mesmos, pois sabemos que nos ficamos, fomos deixados e teremos que aprender a conviver e aceitar a ausencia, aceitar a ferida e carregar a cicatriz, e isso doi, isso e dificil. E dificil entender o que esta alem de nosso controle, a vida, a vida e dificil de compreender e so vivemos porque nos iludimos. Ja a morte, a morte e dificil de aceitar, pois temos medo, todos temos medo do desconhecido. Mas ao meu ver, deviamos temer a vida e nao a morte pois a vida nao passa de uma ilusao de vida e e uma responsabilidade muito grande e muito dificil sabermos o que fazer com essa ilusao. Afinal,o que e a vida se nao um caminho para o fim dela mesma? E o que e a morte se nao um caminho para o recomeço de uma nova vida?

O viver e a nossa oportunidade de amar, de fazer o bem, de criar laços e deixar boas lembranças, o resto nada importa, o resto e materia perecivel, o resto sao sobras.

Findado nosso passeio de barco, foi hora de caminhar pelas ruelas da velha cidade de Varanasi. Entre lojas e mais lojas, ruas estreitas, quase que como um labirinto, os corpos iam passando, vivos e mortos. Mas depois de uma hora eu nao estava me sentindo bem, meus olhos estavam fechando, estava me sentindo fraca, sem força para nada, como se toda a minha energia tivesse sido sugada, foi algo muito estranho, como um sono repentino muito profundo. Parei em um albergue e paguei por um banho. Precisava de uma ducha gelada. Foi o melhor banho da minha vida. Senti todo aquele cheiro, aquela fuligem, aquele peso e aquela morte descendo pelo ralo. Me senti mais leve, me senti renovada! Entao pude aproveitar mais de Varanasi. Tambem fizemos um city tour, paramos para almoçar em um lugar qualquer e fim da tarde fomos para a estaçao de onibus.Ufa! foram exatamente 12 horas continuas e intensas em Varanasi. Nosso proximo destino seria Allahabad. Mais 2 horas de viagem em um onibus caindo aos pedaços, so para terem uma ideia, choveu durante a viagem mas nem para-brisa o busao tinha, nao sei como o motorista conseguiu enxergar o caminho. Enfim, as 6 da tarde chegamos e so tivemos tempo para um city tour, alguns templos e um passeio no rio. Tudo isso debaixo de uma chuvinha muito chata que deixou a cidade inteira em lama e principalmente meu pe(eu estava de chinelos). Paramos em um shopping center e me utilizei do banheiro para me limpar um pouco e me trocar, pois estava enxarcada e em um estado deploravel!

De la fomos novamente para a estaçao de trem. O nosso partia as onze da noite rumo a Khajuraho. Depois de mais uma noite de um quase sono profundo no trem, chegamos na estaçao as 5 da manha do domingo. A vila de Khajuraho ficava a 60 km de distancia. Demoramos cerca de 1 hora para encontrar e negociar algum taxi que nos levasse para la. Depois de muita barganha, um cha e uma conversa conseguimos um motorista para nos levar a um preço justo. A viagem levou cerca de 1 hora e meia, o caminho era lindo, entre campos e pequenos vilarejos. Khajuraho e uma pequena vila tambem, mas com uma boa infra estrutura para turistas, pois e la que se encontram os famosos templos do kamasutra. Sao cerca de 22 templos todos minuciosamente esculpidos com figuras humanas em posiçoes sexuais. E um ponto turistico, e apesar da cidade ser uma vila e facil de encontrar bons hoteis, restaurantes e muitas, muitas lojas. Depois de uma visita pelos templos fomos conhecer a vila e seus moradores. O engraçado foram as crianças que, ja sabendo que os turistas sao aconselhados a nao dar dinheiro como esmola, elas ja vem pedindo coisas que sao dificeis e mais caras de conseguir, como por exemplo shampoo, ou caneta, ou qualquer material escolar, e tudo isso em ingles!Elas seguiam agente o tempo todo pedindo e repetindo:
- Shampoo, shampoo, shampoo... Pen, pen, pen...

Bom, depois de perambular pela vila, conhecer um pouco mais as pessoas e como elas vivem, foi hora de novamente pagar por um banho em algum hotel. Tomei um bom banho e seguimos para a rodoviaria. Dessa vez pegamos um onibus ate a estacao de trem. A viagem foi um pouco mais longa, pois o onibus parava em cada vilarejo recolhendo as pessoas. E incrivel ,mas quando voce acha que ja nao cabe mais ninguem, la vem mais 5, 6 pessoas subindo no onibus!
Chegamos de volta na estacao as oito da noite e nosso trem so era a 1 da manha. Por sorte havia um casal de espanhois que tambem estavam esperando o trem, o deles era meia-noite. Resolvemos ir para a cidade tomar uma cerveja. A cidade era um nada e estava sem luz, alem disso estava quase tudo fechado! Depois de algum tempo achamos um lugar que vendia cervejas. O jeito foi comprar e sentar na calçada mesmo. Foi interessante conversar com os espanhois. Ja era a sexta vez que o cara vinha pra India. Ele esta a cinco meses, apenas viajando, a mulher chegou ha 3 meses. Começamos a conversar sobre a India e suas contradiçoes tao fortes e marcantes. Pude perceber que o choque e os efeitos que esse pais causou em mim eram os mesmos para eles. A sujeira, a bagunça, a pobreza, mas ao mesmo tempo a espiritualidade, a energia, a magia desse pais que torna a experiencia de vir pra ca inesquecivel! E, apesar deles conhecerem bastante e ja terem vindo para ca algumas vezes, eles tambem nao conseguem explicar o que significa a India. O que acontece aqui. Como entender a alegria e as manias e costumes desse povo. Como entender a vida que e tao intensa e ao mesmo tempo tao desordenada.
Como Maria (espanhola) disse: para analisar a India voce tem que primeiro colocar uma moldura envolta e nao comparar com nada.Como um quadro, apenas analisar e vivenciar o que esta dentro dessa moldura sendo algo unico e particular. Concordo e ainda acrescento: analisar como quem analisa uma pintura abstrata. Para alguns, nao diz nada, e uma ausencia de forma e significado, enquanto para outros, diz muito, e o puro instinto, o puro sentimento que te faz caminhar pelas linhas inconcretas, cada canto te trazendo uma nova sensaçao, cada cor te surpreendendo de algum jeito e a arte como um todo te intrigando, quase que como uma provocaçao. Um quadro que alguns pagariam muito para ter, outros jogariam no lixo. E tudo uma questao de ter a sensibilidade e o dom de apreciar uma boa obra de arte, ou , nesse caso, ter a sensibilidade e a capacidade de apreciar a diferença, o estranhamento e uma boa obra da vida.

Voltamos para a estaçao, e depois de algumas cervejinhas foi facil pegar no sono no trem. Cheguei em Vadodara terça-feira as 6 da manha, cansada e muito confusa. Ainda acho que nao consegui absorver tudo que me aconteceu. Foi tudo muito rapido e muito intenso.

Mais uma vez, a India me surpreendendo e tornando a incompreensao da vida cada vez mais profunda e incompreensivel.

Namaste!


Video Varanasi: http://www.youtube.com/watch?v=BRwjIl2_6Gs